Roubar liberdades e sair impune com isso: os direitos reprodutivos e o Estado de Direito na Polônia

, por Meray Maddah, Traduzido por Giovana Faria

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Roubar liberdades e sair impune com isso: os direitos reprodutivos e o Estado de Direito na Polônia

Todos nós testemunhamos os protestos que encheram as ruas das cidades polacas com inúmeras mulheres e homens protestando contra a proibição do aborto apoiado pelo partido PiS e pela igreja católica. Num país europeu em que a ideia de pluralismo tem sido proclamada pelo partido do poder e por todos aqueles que apoiam a controversa política do partido, muitos prenunciaram que seria uma questão de tempo até que os direitos das mulheres entrassem na linha de fogo do ultraconservador PiS para angariar votos e consolidar as suas bases doméstica.

A primeira parte do artigo de Meray Maddah sobre a deterioração da liberdade na Polónia concentra-se nos tribunais e no Estado de Direito; a segunda explora ações polémicas que o partido Lei e Justiça tem praticado para aumentar a sua popularidade no país, como por exemplo o caso da proibição do aborto. A igreja católica assumiu uma posição pouco surpreendente sobre o assunto, pois os líderes da igreja atenderam à proposta com aprovação baseada no que eles compreendem como valores religiosos e corretos.

Em 2016, um plano para uma proibição quase total do aborto foi apresentado pela câmara baixa do parlamento polonês, o Sejm, após protestos em massa. Entretanto, em janeiro deste ano, um novo projeto de lei para restringir os direitos ao aborto foi levado à etapa de comité. A proposta proibiria o aborto mesmo no caso de o feto sofrer de distúrbios congênitos. Poder-se-ia se prever que tal projeto fora elaborado e apoiado pelo partido governante PiS; porém partidos da oposição também foram cúmplices no agravamento da situação. Em janeiro, o projeto de lei “Save Women” (Salve as Mulheres), que legalizou as regras do aborto, foi rejeitado porque um grande número de parlamentares da oposição por abstenção ou por não comparência no momento da votação. Tais ações causaram uma certa decepção entre o público que ainda tinha um pouco de esperança nos partidos da oposição no parlamento.

As organizações da sociedade civil na Polónia, apesar de dificuldades e obstáculos que surgiram no curso da recente repressão do Estado, têm sido a vanguarda na proposta de alternativas que contrariam o projeto original de proibição do aborto. Um exemplo desse trabalho é o projeto de lei «Salve as Mulheres», mencionado anteriormente, incentivado por grupos de direitos das mulheres. Ironicamente, foi no mesmo dia em que o último projeto foi proposto que o Sejm apoiou o projeto de lei antiaborto promovido por grupos como a Fundação Vida e Família. A lei foi suspensa em fases posteriores do processo legislativo, mas os direitos ao aborto estão sob ameaça constante. O acesso a contraceptivos de emergência tem sido progressivamente restringido com a introdução de um requisito de prescrição. Alguns farmacêuticos recusam a entrega das pílulas e, mais recentemente, o governo está a rastrear mulheres que tentam comprar contraceptivos de emergência on-line.

A questão de direitos reprodutivos tem ganhado destaque ao longo dos últimos três anos, e especialmente desde que o partido PiS alcançou a maioria de parlamentares e no executivo, enquanto lentamente se foi apoderando do judicial. O ponto que pode ter sido negligenciado por diferentes relatórios sobre o Estado do leste europeu é que a mesma questão tem estado à superfície desde pelo menos 2008. Em 2008, a nação ficou cativada pelo caso de uma menina poloca de 14 anos de idade sob o pseudônimo de ’Agata’, que foi vítima de um crime de estupro, engravidou e decidiu fazer um aborto. Este caso dividiu o país em dois grupos opostos: defensores pró-vida de um lado e ativistas pró-escolha de outro.

Como o professor e ativista dos direitos reprodutivos Andrzej Kulczycki descreveria a situação após a queda do comunismo no país que criou uma atmosfera propícia para as discussões sobre os direitos reprodutivos das mulheres, “4 de junho de 1989 marcou o fim do comunismo na Polónia. Desde então, aqueles que favorecem o direito de escolha das mulheres na Polônia enfrentam um paradoxo. As mudanças políticas que resultaram no estabelecimento de um estado democrático trouxeram restrições aos direitos das mulheres como um efeito colateral inesperado.” Em 1993, sob pressão da igreja, o aborto foi proibido, exceto nos casos em que houvesse um grave risco à saúde envolvido , ou nos casos de estupro ou incesto.

O sentimento antiaborto tem crescido muito desde então, particularmente entre os eleitores conservadores e os seguidores das ideologias religiosas. Ainda mais alarmante é a politização do aborto que foi incentivada por diferentes candidatos políticos na Polônia. Como o professor Małgorzata Fuszara ilustra, “além das razões sociais, o tema do aborto permanece central no processo político por outro motivo: quando muitos candidatos políticos concordam em tópicos como economia, política externa e processos de democratização, eles recorrem ao debate sobre o aborto para se distinguirem dos outros candidatos. O aborto, então, desempenhou um papel crucial na cristalização do sistema político polaco após o comunismo, quando a Polônia entrou em um novo estado democrático”.

Um dos maiores perigos que as restrições ao aborto criaram foram as soluções ilícitas disponibilizadas em mercados clandestinos que ofereciam opções para mulheres terminarem a gravidez, mas às custas da ilegalidade e de graves riscos para a saúde. De acordo com a BBC, entre 10.000 e 150.000 abortos ilegais ocorrem anualmente, enquanto o número de abortos legais está entre 1.000 e 2.000. A discrepância impressionante entre os números mostra os sérios resultados das restrições ao aborto: um clássico exemplo de como as limitações aos serviços de saúde, independentemente de suas causas, levam a um aumento no uso de procedimentos ilegais que podem pôr em risco a vida dos mais vulneráveis pacientes.

O fortalecimento da igreja católica polaca na conjuntura política atual consolidou o apoio às limitações praticadas nos direitos reprodutivos das mulheres. A liberalização do aborto continua sendo uma questão de sobrevivência para aqueles que pedem acesso justo aos serviços de saúde. Mesmo em 2008, houve esforços consistentes de grupos de direitos das mulheres, defensores dos direitos humanos, feministas ativistas, ONGs e associações de solidariedade para transformar a conversa numa designação adequada das liberdades civis, especificamente com a legalização mais ampla do aborto.

Nenhuma prestação de contas: União Europeia vs Polónia

O mundo tornou-se um espectador dos eventos na Polônia. Os observadores são abundantes e os críticos das decisões e dos tomadores de decisão do governo são ainda mais numerosos; no entanto, o que surpreende é a falta de responsabilidade do governo.

Quando se considera que os valores acordados no sistema da UE são violados num Estado-membro, o Estado violador deve enfrentar a responsabilização através do desencadeamento do Artigo 7º do Tratado da UE. Conforme descrito pelo Politico Europe, o Artigo 7º é um “procedimento de violação da UE a ser usado contra os países membros que cometeram violações dos direitos fundamentais”. “Existem duas partes - o Artigo 7.1 permitiria ao Conselho Europeu dar um aviso formal a qualquer Estado-membro acusado de violar os direitos fundamentais. Se esse aviso não tiver o efeito desejado, o Artigo 7.2 imporá sanções e suspenderá os direitos de voto.” O parlamento europeu votou no início deste ano por uma grande maioria para apoiar a decisão da Comissão Europeia de desencadear o Artigo 7º contra a Polónia. Completar a totalidade do procedimento levaria a Polônia a ser privada dos seus direitos de voto na UE.

É muito importante mencionar que, embora a votação sobre o desencadeamento do Artigo 7º tenha sido amplamente aprovada pelos deputados do parlamento europeu, a Comissão ainda está tomando medidas concretas, uma vez que os movimentos adicionais seriam provavelmente bloqueados pelos Estados-membros. Na primavera, a Comissão Europeia deu ao governo de direita polaco até o final de junho para resolver as disputas sobre a independência do sistema judiciário. Varsóvia, através de seu primeiro-ministro Morawiecki, ainda tem que atender às solicitações feitas pelas instituições da UE. No final de outubro, no entanto, após um pedido da Comissão Europeia em agosto, o Tribunal de Justiça Europeu ordenou que a Polónia suspendesse imediatamente as ações feitas à Suprema Corte na Polônia, pois elas constituíam uma violação da legislação da UE. As novas leis estipulavam que a idade de aposentadoria dos juízes da Suprema Corte deveria ser reduzida, e que quaisquer serviços judiciais ativos poderiam ser estendidos pelo Presidente da Polônia - uma lei que suspendeu quarenta por cento dos juízes do Supremo Tribunal.

A rebelião aberta com a União na qual a Polônia está negociando está a provocar preocupação e coloca o Estado da Europa Central em rota de colisão com seus pares europeus. Os valores fundamentais defendidos pela UE, como o respeito pelos direitos humanos e a dignidade humana, a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito, foram visivelmente desafiados pelas reformas da Polónia orquestradas pelo partido Lei e Justiça. Além disso, a supressão que as mulheres polacas e os seus frágeis direitos reprodutivos enfrentam com as propostas ameaçadoras de proibição do aborto é ainda mais alarmante.

Observando os movimentos em todo o mundo liderando o ativismo social e criando debates sobre direitos humanos e dignidade humana, pode-se perceber que, na verdade, o discurso está sendo empurrado numa direção que esperaria atender àqueles cujos direitos estão sendo marginalizados e oprimidos. No entanto, com a ascensão do zelo da extrema-direita e a sua política de acompanhamento, testemunhada particularmente na Europa, parece que, no caso específico da Polónia, os direitos reprodutivos das mulheres serão ainda mais restritos.

As ações onipresentes tomadas pelo partido polaco PiS não surpreenderam aqueles que os colocaram no poder, mas a confiança entre os que se opõem a sua extrema política, e os partidos políticos que retrataram uma fina camada de oposição diminuiu. Os atores da sociedade civil encontravam-se na posição de responsabilidade e prestação de contas aos seus concidadãos para combater as graves violações de seus direitos e dignidade. Pode-se supor que, atualmente, discussões sobre a separação entre a igreja e o Estado teriam sido esquecidas e praticadas ativamente nas democracias modernas. No entanto, a Polónia com as suas reformas e o seu enfraquecimento da separação de poderes, está lentamente esbatendo a linha entre o que deveria ser uma simples questão de cumprimento da Constituição e o que pode ser politicamente implementado.

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